Engraçado perceber, quando menos se espera, alguns hábitos tão latentes e imperceptíveis em nós mesmos. O prazer dessa descoberta é, sem dúvida um dos maiores que se pode ter, assim como as revelações trazidas à tona. Nessas férias, em que pude, finalmente, espairecer ao menos um pouco, recuperar-me dos quase oniperesentes estafa e estresse, consegui reparar num costume muito comum de todo o mundo, certamente.
Desde as mais primevas eras, fazemos música, seja de que forma for. Em todas as sociedades antigas, houve a presença da música. Os iorubás, ashantis, bantos, zulus e outros povos africanos fizeram largo uso dos beribaus, as guitarras africanas, e dos atabaques, de todos os tamanhos; música pra eles era o mesmo do que se encontrar com a essência do seu passado, clamar pela luz necessária para, pelo menos, iluminar o árduo caminho por eles enfrentados e comunicar-se com suas divindades. Os árabes, persas e os hindus, tão dispersos pelas suas inúmeras tribos, califados e impérios, faziam música para entreter, mostrar a beleza e exuberância de suas sociedades e criar uma identidade própria, uma marca que os diferenciaria. Os japoneses procuravam o prazer e o deleite proporcionados pelo Nirvana, com seus singelos tambores e instrumentos de corda. Os nativos americanos procuravam glorificar a exuberante natureza que os cercava, coisa que até hoje poucos compreendem tão bem quanto eles. Os europeus, por sua vez, punham sua história, seu pensamento, sua busca por Deus ou por algo equivalente em suas canções.
Exemplos, logo, é o que não faltam; ao contrário, sobram aos montes. O mundo, porém, desenvolve-se e com isso, surgem novas formas de se fazer música. Primeiro, a lógica invadiu esse âmbito da arte humana, trazendo consigo a exatidão do ritmo, do tom, das notas musicais, da temporização. Mais um pouco depois, a acústica invadiu esse campo, tornando capaz a fabricação e criação de novos instrumentos musicais, além de possibilitar uma melhor orquestração da mesma. Após isso, a elétrica e a eletrônica entraram em ação, tornando os instrumentos mais potentes e os amplificadores que permitem uma melhor divulgação do som musicado. Com a globalização, finalmente, foi possível transformar a música em bites e transportá-la pela internet, permitindo um melhor conhecimento dessa arte de todos nós.
Voltando às minhas próprias férias, quando possuo um maior tempo, fico fazendo dowloads de músicas, da mais comum à mais inusitadas e exóticas, em especial desses dois últimos tipos. Tenho prazer pelo desconhecido e busco construir a minha própria identidade, baseando-se, não unicamente, nas canções que admiro.
Há algum tempo já, ovui falar num novo tipo de música: o vocaloide. Esse novo estilo ainda é desconhecido da maioria hoje por razões provavelmente sociais. Baseia-se numa total digitaçização da música: nem o cantor é real, tudo é virtual e imaginário, diáfano e utópico. Procurando novas experimentações, buscando as sensações, os sentimentos, os paladares, olfatos, visões e sabores dessa nova forma de conceber música, decidi ouvir alguma música desse tipo.
Encontrá-la, incrivelmente, não foi difícil. Era japonesa, distante de um mundo inteiro, mas com a internet, reduziu-se a alguns segundos relativos ao carregamento do vídeo. A cantora virtual era bonita, diferente: mostrava um avatar, uma imagem provavelmente real da alma de muitas artistas. Era branca, sorriso estampado e longas e belas madeixas...verdes. Era uma cantilena romântica, a letra parecia melosa, mas valia a pena ao menos ouvir e experimentar.
Em miúdos, a música falava das emoções de uma mulher (ou seria uma menina) de ver o amante abandonando-a por outra. Ela, ao perceber essa situação, inconsolável e descrente de sua paixão, considera o amor uma eterna guerra, em que nunca se é feliz. Sua meta é monstrar ao seu amado todo o seu Amor para ele.
Primeiramente, acho que alguns já estão fartos de músicas, textos, roteiros, fimes sobre esse mesmo roteiro. Em segundo lugar, gostaria de ressaltar que a música, diferentemente de todas que ouvi, não tinha o fundamental: sentimento. A voz da vocaloide, além de ser exageradamente estridente, não tinha nenhuma variação. Seu ritmo era constante, entrecortado apenas por alguns fadeouts. Não mostrava a tempestuosidade da melodia, o gracejo da confusão. Era simplesmente uma estrutura programada e memorizada por um software. Posso estar enganado, mas realmente não senti qualquer tipo de êxtase ouvindo essa canção. Provavelmente, tal sensação de puro maquinismo musical se deve à tal tecnologia, a qual evolui nossa inteligência, entretanto nos leva ao quase total entorpecimento sentimental.
A existência de técnicas "pós-modernas", como os vocaloides e outras coisas do tipo, têm tornado a arte humana uma indústria cultural, impossibilitando-nos de sentir o âmago do amor e da dor. às vezes, nem mais religiosas das músicas, sequer temos sentido a essência divina*.
Não afirmo, porém, caro leitor, que o progresso tecnológico não seja proveitoso e preciso para nossa própria evolução filosófico-intelectual. Cabe à humanidade determinar aquilo que realmente lhe servirá para tais objetivos e aproveitar-se ao máximo disso. O resto, simplesmente é resto: se esvai com as feridas do tempo.
OBS: Essência divina foi um termo usado para ecumenizar o significado da divindade, tornando o texto mais religiosa e culturalmente aceito, evitando possíveis polêmicas. Aliás, basta de guerras santas ;D
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