A Onipotência da Verdade

"Havia já muitos anos em que me via dominado por aquele poder paralelo. Como morador do Alemão, na Penha, desde bebê, cresci dormindo embalado pelo som dos tiros. Quando moleque, jogava bola e soltava pipa, lá no alto do morro, no Coqueiral. Coisa de criança com infância bem aproveitada, como hoje não se vê. Pés descalços, alegria pura, um universo de terra, poeira, mato, manga tirada do pé...mas aí eles chegavam. Subiam com aquelas armas, aqueles trabucos colossais, coisa mesmo de guerrilha. A vó me gritava, dizendo pra ficar escondido em casa, senão os comunistas, aqueles monstros, iriam me comer.
Taí uma coisa que ficou estigmatizada em mim: Comando Vermelho. Naquela época, eles eram apenas um bando de facínoras comedores de crianças, que seguiam uma parada chamada Comunismo. Essa palavra era tabu, eu bem me lembro. Comunismo era sinônimo de CV. CV era hiperônimo de violência, truculência e chacina. Estes, por sua vez, eram hipônimos de lei. Meus pesadelos e os de meus amigos eram sobre toda essa realidade. Ninguém podia criticar, mencionar, comentar sobre o que a gente vivia. O governo das Laranjeiras, daquele palacete decadente perto da sede do Fluminense Football Club, nem nos dava atenção. Polícia Militar, nem chegava perto do pé do morro, na Grota.
A adolescência chegou, e o funk veio junto com ela. Aqueles monstros do CV prosperavam. Organizavam os bailes onde eu e meus colegas íamos, promoviam artistas, faziam festas beneficentes, colocavam garotinhas novinhas vindas do interior para servir de escravas sexuais, vendiam maconha, cocaína e cia. Desde aquela época, nossa comunidade era ponto turístico do Rio, assim como outras favelas. Os gringos que aqui vinham passavam assiduamente no baile e na boca de fumo, para, segundo a palavra deles, provar da melhor maconha do mundo, vinda diretamente da Colômbia, sem passar pelo estômago ou pelo ânus de um traficantezinho qualquer que viajava de avião. Era extremamente fácil identificá-los: eram os vermelhos, todos aqueles que estavam com a pele queimada de Sol, lábios inchados e inflamados e olhos avermelhados por causa da 'marola'.
Naquela idade, eu era revoltado com a vida que eu escolhi, ou a que fui destinado. Até hoje não sei qual dessas duas versões é real. Quase entrei nessa vida, mas aí via amigos meus morrendo cedo, branquelos da Zona Sul doentes irreversívelmente e o exército e a PM, que começaram a dar as caras por lá. Aí preferi ser um idiota, um trabalhador desse, só mais um Silva, um pai de família. Quando fiz dezoito, tive que me alistar no exército. Os traficantes exigiram um 'tributo': levar, a cada mês, um fuzil do exército. Pensam que era tarefa difícil? Nada, os próprios comandantes eram coniventes com o sistema.
Depois, virei pedreiro, trabalho que qualquer um podia fazer. E eu, somente com o fundamental concluído, de péssima escola pública da época do democrático regime militar, me adaptei facilmente ao resto que jogavam para mim todo final do mês. Eu e os companheiros ficávamos debaixo de Sol e de chuva, carregando tijolo, cimentando os futuros edifícios. No final da obra, a gente tava dispensado: aí vinha outra luta por um emprego que não iria durar pra sempre.
Naquela época, me casei e formei família. Na nossa 'casa', um quarto-e-sala de poucos metros quadrados e mal-conservado, desempregado, tive que pagar impostos. Mas não ao Estado, o que nada nos garantia, mas sim aos traficantes. Naqueles tempos, já existiam tantas facções, quadrilhas e subdivisões, que já nem sabia como diferenciá-las. Todas cobravam pela luz, gás, 'segurança' e até pela TV. Só nos restava pagar. Um dia, estava sem dinheiro, e devia aos traficantes. Em vez deles cortarem a luz, que já era ilegal na localidade onde morava, eles me levaram para o 'julgamento'.
Era noite quando voltava de casa, depois de mais um dia quente em que tentava achar desesperadamente um emprego. Encarei várias portas se fechando pra mim, com a voz severa, fria e dura constatando: "Você não tem experiência". Subia já as longas escadarias, ruas e vielas daquela comunidade, quando, num beco deserto, alguém veio em minha direção, olhando fixamente em mim. Dei alguns passos pra trás, mas alguém já tinha me pego. Após algum tempo desacordado, percebi que estava num local deserto, no meio da mata. Era um círculo de uma dúzia, assim acho, todos apontando as armas que tinham para mim. Entraram no meio dois homens, um com uma espécie de tocha e o outro aparentando ser o líder, dizendo:
- Estamos cansados de vagabundo que não paga as nossas taxas! Nós lhe damos conforto, segurança, ajuda nos momentos de necessidade, e é assim que você nos retribui? Você nunca dependeu do Comando pra sobreviver?
E eu:
- Sim, mas....estou procurando emprego, você sabe como é difícil né, nesses dias em que os ricaços não querem construir prédio...sou pedreiro. Por favor, me perdoem! Eu juro que vou pagar o que devo!
- Ha Ha! - Ria alto o chefe - Dá até pena de você, idiota! Devia acabar com a tua raça agora mesmo, mas tô vendo que não vale a pena esmagar um verme desprezível como você. Vai pra casa! Não olha pra trás!!
Cheguei em casa, mais humilhado que nunca. Não mencionei o ocorrido com minha esposa, então ela pensou que eu estava assim porque não consegui arranjar emprego. Já tínhamos dois filhos pequenos, e naqueles tempos, a gente vivia de favor, de doações. Quando fomos dormir, não consegui pregar o olho. Estava apavorado.
No dia seguinte, quando estávamos tomando um resto de café, entraram na minha casa. Era um garoto, um mensageiro do tráfico.
- Mané, vai presse endereço aí!
Minha esposa reparou a origem do rapaz e perguntou:
- Que isso, você está se envolvendo com o tráfico? Quantas vezes eu te falei, procura um emprego digno e honesto, é esse o jeito! Não tem esquemão, nem nada parecido!! Traficante não morre velho não!!
Decidi contar da história da conta e o julgamento do tráfico. Ela ficou preocupada. Resignada, abaixou a testa, aparentando estar vinte anos mais velha, e disse:
- É...então vai lá...não sabe o que é...boa sorte, vou rezar por você.
Lá fui eu, como um boi vai pro abatedouro. Quando cheguei lá, encontrei mais uns muitos homens, como eu. Um senhor de terno subiu à frente e falou:
- Olá, amigos. Sintam-se privilegiados. Vocês, sem nenhum tipo de processo seletivo, possuem um emprego definitivo na nossa construtora. Sabemos que o mercado imobiliário não está bem das pernas, mas um futuro novo vem pela frente. E vocês participarão disso!
Metade dessas palavras tinha jogado fora. Achei inútil o discurso do senhor sobre mercado imobiliário, algo totalmente desnecessário. Era o que achava na época. Pior foi a previsão dele, considerei muito piegas e sem sentido. Ainda mais para um trabalhador como eu, cujo maior foco encontra-se no presente. Mas aplaudimos, e comecei a trabalhar. Eram todas obras públicas. Minha empresa era marca registrada nesse tipo de obra. Construção e reforma de escola, hospital, administração pública, isso sem falar nos asfaltamentos que a gente fazia. Realmente, olhando pra trás, percebi que aquele engravatado sabia o que estava falando. Um presidente operário e sindicalista foi eleito e com ele veio uma preocupação maior com o povo pobre. Deu pra reformar meu barraco, comprar móveis novos, pensar no futuro do meu filho, fazer uns cursos gratuitos pra ajudar na minha profissão. Até minha mulher começou a trabalhar, fazendo um pouco de tudo. Meu sonho era fazer uma faculdade. Engenharia Civil, eu acho. Entrei num supletivo pra ver se conseguia terminar o ensino médio e recuperar o tempo perdido.
Mas então, quando pensávamos que todos estavam 'juntos', recuperando-se de quarenta anos de pleno abandono do poder federal, o tráfico ia se fortalecendo. Matavam todos aqueles que iam contra seus princípios, e também aqueles que mostravam os podres do seu esquema criminoso. Ainda tinham moradores apoiando esse bando, mas eles cada vez iam diminuindo. Pouco a pouco, fomos sendo picados pelo mosquito. Não o Aedes, mas sim pelo governo estadual.
Entrou há oito anos e era um baixinho. Invocado. O Rio estava num processo de 'limpeza': os focos de sujismundice do governo anterior eram desbaratados, limitando os antigos chefes a uma cidade, bem distante da capital. Naquela época, limpeza era sinônimo de trocar o sujo pelo mal-lavado. Saíam alguns poucos traficantes, e ia entrando os milicianos, horda cruenta de militares exploradores e hipócritas, que queriam criar o Estado dentro do Estado, em dimensões incomparáveis ao tráfico. Enquanto isso, na mídia, defendia-se os milicianos, de forma implícita. Todos queriam lavar com sangue o decadente tráfico. Fiquei sabendo que, nos países ricos, não se tinha esse tráfico. Era tudo feito a quantidades de formiga, bandinhos pequenos, sem armas, sem morte, sem disputa por poder.
Quando ocorria algum conflito, a PM entrava, atirando. Era a Tropa de Elite, osso duro de roer. Matava tudo o que via pela frente. Animal, bandido, trabalhador. Eram dias difíceis. Por um lado, o consumo, as contas, o crediário, a expectativa de entrar na classe média. Sim, aqui não parecia mais uma favela, um local de excluídos. Fomos elevados à condição de comunidade. Algumas se tornaram bairros longínquos. A TV, o rádio e o jornal decidiram começar a entrar na comunidade, conhecer sua cultura, suas vielas, seus prodígios.
Foi então que veio a UPP. Começou, por motivos logicamente óbvios, na Zona Sul. Foi aí que a mídia e a gringada não-viciada começou a tomar o Santa Marta. Ao governo, coube a missão de desfigurar aquele povo, transformando o morro em paraíso dos pobres da Zona Sul e ponto turístico. Deu tão certo que eles ampliaram. A coisa em si era simples, bastava pôr um mini-batalhão, chefiado pelo Estado, o qual, por sua vez, teria o domínio sobre a comunidade.
Foi aí que, em 2010, teve a guerra. Acompanhávamos, abestalhados, aquela bandidagem do morro fugindo em debandada, cheia de medinho. A imprensa mostrava aquilo como se fosse um épico, uma coisa brilhante. Num domingo, invadiram a comunidade. Era o Estado se impondo pela primeira vez na minha região. Foi bem ao estilo daquela guerrilha dos anos 70/80, mas bem pior e armada até os dentes. Em seis horas, puseram a bandeira do Brasil e do estado no topo da comunidade. Passei por lá, alguns dias depois. Era impressionante. Fazia muito tempo que eu não via aquela bandeira verde-e-amarela, desde aqueles tempos de ginásio, com hino toda segunda. Era linda. Me sentia cidadão.
E o ano terminou, e seis meses depois construíram umas UPP. Lindona, ocupava uma creche, que tinha sido desativada com esse objetivo. A polícia tomou conta do pedaço, dizia todo mundo. Ocasionalmente, invadiam algumas casas, à procura de coisas suspeitas, segundo eles, e destruíam todo o trabalho de anos para ficar pelo menos arrumadinha a casa. Acabavam com os móveis e os eletrodomésticos tão esforçadamente compradas no crediário das Casas Bahia, durante até mesmo dois anos inteiros. Roubavam dinheiro, por acharem suspeito. Quebravam lojas. E não adiantava reclamar, porque os que faziam isso eram só 0,01% do total da população. A gente se calou, engolindo aquele doce amargado pela língua do Estado.
Depois, minha vida fervilhou. Fiz técnico em Edificações, mas ainda não consegui fazer a tão sonhada faculdade. Quem sabe um dia? Tem agora esse ProUni e o FIES, mas o que me falta é o dinheiro. Ainda não tive coragem de fazer o ENEM. Se bem que dizem que é fácil, que chagam a colocar questões falando de vôlei e dança. Bem, fica pro futuro.
Fiquei ocupado, de 2010 até 2014, com comprar. O governo estadual decidiu me tirar, junto com outros tantos moradores, do morro. Diziam, parece, que era por causa do risco de deslizamento. Nunca aconteceu isso, mas mesmo assim, não me preocupei: aceitei aquela proposta na hora. Fui transferido para um conjunto residencial, com minha família, um ano depois. Foi um prédio construído muito rápido. Fui promovido a mestre de obras e ganhava bem mais do que antes. Para completar a mudança, comprei móveis novos, modernos, bonitos, todos no crediário. Meus filhos entraram na faculdade sem dificuldade, só no cursinho barato, em que eles aprenderam a ser gente culta, a ler 'boa revista' e a ter um 'bom gosto'.
Foi aí que percebi algo de errado. O apartamento, concluído tão rápido, tinha problemas estruturais bastante sérios. Material barato, constatei. Tive que comprar novos tijolos, para reformar a casa 'nova'. Fui acumulando dívidas, me enrolando e, quando me percebi, estava com o nome sujo. Abri o jornal de domingo, de onde vinham aquelas notícias maçantes sobre economia doméstica, defesa do consumidor. Algo que, infelizmente, se tornou difícil pra mim. Consegui limpar meu nome, com muita dificuldade. Foi aí que me tornei zura, daqueles que tentam segurar o dinheiro no bolso antes que ele se evapore naquelas belas igrejas que os engravatados fizeram de construir pela cidade inteira."
N.P.

Trinta anos. A casca mudou, ficou mais brilhante. Agora põem cera de carnaúba para que ela fique mais brilhante. Lançam remédio, fertilizante industrializado, batizam a fruta de conservantes, aromatizantes e outros 'antes'. A polpa da maçã, porém, continuou a mesma, amarelinha, porosa, suculenta, com aqueles carocinhos e o caule no seu eixo. Logo, nada mudou: assim que abrem a maçã, e a deixam exposta, ela escurece, perde o sabor e fica horrivelmente murcha. Os flagelados da cidade dos anos 80, tornaram-se alpinistas sociais, nova classe média, novo gado, agora consumidor. Tornaram-se cidadãos, mas com poder tão ínfimo, tão risível para os mais ricos. É essa a nossa nova sociedade.

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