Morbidus Operandi

Era um dia perfeito. Nunca pensei que pudesse viver um momento assim. A beleza, a exuberância...Parecia uma natureza morta de minha vida.

Finalmente aquele seria o último dia em que usaria aquele transporte. Desgraça de minhas manhãs e tardes. Incrível, porém, é como nós desenvolvemos afeto por tudo aquilo que nos maltrata.

Fui escravo e virei capataz. Isso era uma certeza comparativa. O que, talvez,  nunca deixei de ser é ser nego. Um nego que se nega. Um nego que açoita outros negos.

Não, amigo, estava numa estação de trem do século XXI. O estado era assim: a pintura era nova, a estrutura, velha. Sentei, olhei meu terno, minhas abotoaduras. Agora eu era executivo, eu fazia, eu tinha poder para tanto.

Quando entrei, sentei. Os outros negos, mesmo velho, aleijado, mulher ou criança, eu me negava a dar o meu lugar. A porta branca se negava a fechar. De tanto negar, escurecia. Os sinais anunciavam: a viagem seria longa.

Pessoas liam, pessoas conversavam, pessoas batiam palmas. Eu permanecia estático. Pensava. Não era lugar de agir. Não havia como agir. Era o último dia de uma vida. Hoje é outra existência. Eu abri uma porta, entrei, e a mesma tinha se fechado atrás de mim.

O celular, esse patrão me chamava, gritava. Era do trabalho. Sempre exigia mais. De mim. De todos. Agora, eu também queria mais.

Ainda me lembro daquele dia moreno, eu olhando nas vitrines verde-avermelhadas. O progresso, le maxime fashion au Paris, o status, the edge of glory. Parei. Era pobre. Era a minha realidade, e pobreza nunca inspira felicidade.

Hoje, eu compro a minha felicidade. Aspiro-a, acelero-a, como-a, bebo-a. Porque, sem dinheiro hoje, não dá pra ser feliz, hoje. 

Ponho o fone no ouvido. No tocador, tudo organizado pela máquina-artista, ou artista-máquina, não sei. A vida ainda não encontrou a resposta. Mas você se lembra do Scorpions? Eu estava escutando. Tão bom quanto a passagem dos bons tempos. Mas tudo é morto.

Um aperto, um desrritmo na bateria. Hora de trocar a faixa. Alguém gritava que o fim estava próximo. Não, o fim está aqui.

A viagem chegava ao fim. Estava inebriado de felicidade. Cara, é a última vez! Vejo um homem, um senhor feliz, mas com seu corpo destruído. Faltavam dentes, e juízo. Vejo um homem, um garoto sério, mas com seu corpo perfeito. Sobravam-lhe dentes e juízo. O que é, então, a felicidade?

E o final da linha é o final do tudo. Cerro os olhos às verdades, mas também às mentiras. E paro. Ofego. Saio do trem de minha vida. Bem disse aquela mulher:

"Em país de Terceiro Mundo, quem anda sem identidade, descansa como indigente."

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