A Cidade das Pedras

Localizada numa região de vale, por onde passava sinuoso rio, por anos o que se conhecia por esse nome estava entregue ao estado da selvageria. Mata nativa, curso d’água preservado, coisa e tal. Mas isso foi em tempos tão remotos, que de tão claro o progresso da sociedade que hoje lá vive, não há qualquer registro fotográfico nem relatado. Homem ali não vivia, era área de pântano, logo área obscura.

Porém, a cidade começou a devorar tudo o que lhe vinha à frente, inclusive os rios que a mesma usufruía. O rio foi desviado, o cheiro do metano dissipou-se, o mato secou, os animais foram sumindo. Sobrou o acidente geográfico, que tornou aquela região que tinha se tornado um punhado de árvores pequenas e pasto num verdadeiro buraco. Mas a espécie que passou a dominar o ambiente, tal como num nicho ecológico, numa monogamia destrutiva e pouco consolidada com a natureza.

Os pioneiros em sua ocupação o fizeram de forma ilegal: eram invasores de áreas não aproveitadas por seus proprietários. O primeiro grupo de humanos que ali viveu vinha de uma sociedade com alto grau de hipermetropia. Não que os oculistas nem os poucos oftalmologistas da época fossem reis num império de cegos, mas o principal sintoma era identificado em todos: sabiam com nitidez o que ocorria com o outro, mas não sabiam o que lhes estava mais próximo. Não conseguiam enxergar as minúcias que se lhes espreitavam naquela vida. Bastava o julgamento de um dos afetados por tal doença para inúmeros fatos estivessem ligados a essa constatação. Principalmente os elementos mais altivos possuíam maior grau de desvio, enxergando até mesmo o invisível na obscuridade de suas visões.

Era uma sociedade praticamente cega, por não saber o que era luz. Dominavam homens capturados especialmente para fazerem o trabalho sujo, sem qualquer tipo de remuneração, vivendo presos às correntes e grilhões de ferro. Pior não era a prisão física, mas a visual: por elos invisíveis e inexoráveis, todos só conseguiam enxergar aquilo que lhes estava logo à frente.

Após séculos cativos, a classe mais excluída dessa sociedade consegue a sua libertação – jurídica, somente. Foi tudo um pouco mais de clareza de visão nos olhos adoentados, que pouco depois dessa libertação, foram embaçados pelos seus próprios donos. É porque os ex-escravos se viram obrigados a morar longe da bela cidade que se construía. Não tinham mais serventia para o senhorio quase cego.

À época da libertação dos escravos, um grupo de pessoas, cuja maioria usava camisas e calças verde-oliva e óculos Ray-ban pra disfarçar seus olhos caolhos, indignaram-se com tanta podridão e escuridão em que estavam metidos. Desejavam limpar toda a sujeira a partir da convicção de que estavam enxergando a luz. Derrubaram, então, o império de olhos claros e instauraram a república das cataratas. É porque, de tanto olharem para o Sol e forçarem outros a verem-no, o cristalino começou a se tornar opaco, e cada vez mais havia cegueira naquela terra.

O povo pobre, como o que tem morado no vale, tem sofrido ainda mais com o estigma da cegueira. A educação dos camisas verdes era forçosamente verdadeira, mas se ensinavam o povo a ler e escrever nas suas admirações acerca do Sol, faziam uma proeza. Acesso à cultura era inexistente. Festejos dos moradores eram raros, pois todos viviam para trabalhar, inclusive as crianças. A mania de limpeza dos então governantes começou a ser posta de lado. Era melhor fazer vista grossa, não enxergar essa população que se espreitava pelo vale inteiro.

Ainda puseram indústrias para impedir o crescimento do que consideravam um câncer. Somente duas estradas o alimentavam: uma de asfalto e a via férrea. Para o povo, eram a aspiração para a ida a um mundo melhor que o deles.

Os anos passavam, e a vista estava cada vez mais rígida e inútil. Aí, o vento que vinha de oeste trazia uma poeira branca, parecendo parte de uma pedra bonita. Alguns homens experimentaram, aspirando-o pela narina, e disseram ter enxergado claramente, durante poucos minutos. Queriam mais e mais. Os que os viam começaram a fazer um negócio lucrativo: a venda do pó. E classificavam de acordo com uma possível qualidade usando preços: pó de dois, pó de cinco, pó de dez, pó de vinte. Alguns da comunidade, por nada terem, preferiam ver as luzes brilhando em seus olhos do que as notas porcas e imundas em suas mãos calejadas.

As menininhas e os playboys do lado sul do vale iam até o lugar pra obter o pó milagroso. Diziam que um dos maiores sábios da mente o utilizava para entender a psique. O que não sabiam é que a partir de certa quantidade, o pó faz o coração acelerar, até parar de exaustão. Muitos morriam e ainda morrem, vendo a luz. No caso do pessoal do Sul, fizeram uma negociata para passar pontos de venda da poeira para lá. O vento também seria o responsável pelo transporte, além de pessoas, carros, motos e até kombis do governo.

Outra luz chegou até lá, em resposta ao pó. Um grupo que se considerava ex-admirador das propriedades terapêuticas do particulado criou uma comunidade religiosa simples, messiânica e fundamentalista. Dizia-se tirar demônios e curar urticárias da alma, e liam um livro surrado e bastante grosso, que seria o único em toda a vida deles. Carregavam-no para cima e para baixo, mas somente os homens o faziam, pondo-o debaixo da axila. Às mulheres cabia o papel de testemunhar a luz invisível e insensível e esconder seus belos corpos debaixo de vestidos longos.

A comunidade aumentou, explodiu para todas as partes da cidade, do estado, do país e até do mundo. Muitos enxergam a tal luz, mas devem entregar parte do que ganham para se sentirem curados de sua cegueira.

No final, todos morrem cegos.

Há poucos anos, juntaram o pó e transformaram em pedra. Põem-na em cachimbos e a fumam. São pessoas esquálidas, que nada tem além de seu corpo e a (in)certeza de que viu a luz. Vivem na miséria, mas acham que são felizes com uma pedra. Pena que a felicidade dura menos ainda do que o pó. O vale está repleto de pedras, pedregulhos e pedrinhas feitas daquele pó. Descobriram que ele vem dos Andes.

A igreja que começou sem sede própria, sem casa, hoje tem um templo faraônico, além de uma organização corporativa de dar inveja a muita empresa. E isso nos horizontes limitados de uma possível iluminação. Pessoas esquálidas que destinam grande parte de sua renda e pão pequenos aos donos do rebanho morrem ouvindo aquele conjunto de rezas, hipnotismos, e dizem também as luzes. O chato é que a felicidade é resultado de uma castração da liberdade. E as pedras também existem na igreja, mas são feitas de material menos especial e servem para atirar àqueles que possuem posições contrárias às deles.

Entre esses, encontra-se os que preferem viver nas sombras. Como eu, que todas as segundas pega um ônibus na parte oeste da cidade, rumando ao norte, passando pelo templo dos eternos cegos, que dizem enxergar uma nesga de luz fazendo compras, passando pelo templo maior da igreja, com pessoas que abrigam a bíblia no calor dos seus suvacos, saltando num bairro na descida do vale, onde tomo um metrô confortável(?), com ar-condicionado(?), panorâmico, com vidros fechados de onde os turistas cegos podem ver as pessoas fumando pedras lá embaixo, na linha férrea que segue para a baixada. Saltando na planície que anteciparia o mar aterrado pelos camisas verdes, vendo pessoas dormindo ao relento, enxergando as luzes em seus sonos.

Semana passada, disseram que os camisas negras, eternos defensores dos cegos, foram para o vale combater os vendedores de pedra e pó. Mas só conseguiram prender algumas pessoas, que foram logo libertadas. O que o povo sem visão quer é um espetáculo para enxergar. A igreja é constantemente acossada pela mídia, pelo povo e pela justiça cega. Ambos não se destroem completamente, apenas encontram outras formas de esclarecer as pessoas, em circunstâncias diferentes.

Esse é o cotidiano na cidade das pedras, um vale em que alguns preferem escalar a montanha frágil e escorregaria do pó, outros preferem escalar o monte Sinai e outros preferem ver tudo isso do viaduto do Metrô Rio, como num safári, em que pagam R$ 2,80.


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