A Roda do Desperdício

Desperdiçar. Essa foi uma ação que, ao longo da história, nunca teve um significado tão agravador. Possuía importância secundária. A literatura registra o uso desse termo nos romances, na perda de tempo. Sim, esse talvez tenha sido a primeva ideia de desperdício, tal como se o conhece atualmente. Talvez tenha sido a consciência Calvinista de ócio que nos tenha levado a esse estágio. Quem sabe, um desperdício aparentemente incômodo tornou-se a faísca para uma série de transformações que levaram a um desperdício bem maior e mais grave?
É preferível começar no Hoje. Daqui, desta estação, far-se-á uma volta. Muitos criticam esse modelo, porém dessa maneira pode-se estabelecer um paralelo entre esse ponto e o outro, lá atrás. A arte de desperdiçar é, atualmente, uma ciência latente, mas bem difundida. Basta reparar no cotidiano. Nas ruas, há grandes congestionamentos, com amplas emissões de óxidos de carbono, formadas por carros que possuem somente uma só pessoa. Nos lixões, enormes quantidades de produtos aproveitáveis, considerados lixo, só por serem velhos ou terem pequenos defeitos. Nos restaurantes, principalmente os de 'autosserviço', no final do dia, o que se vê são mesas e mais mesas repletas de pratos com restos de comida, às vezes intacta, por simplesmente o cliente reparar que colocou comida demais para as suas necessidades fisiológicas. Nos mercados, feiras livres, quitandas e comércios, o que mais sobra são produtos com partes 'ruins', que são jogados fora. No campo, empresas agrícolas, ao perceberem que a safra pode ultrapassar a capacidade de procura do consumidor, usam o excedente como adubo ou simplesmente as inutilizam, para simplesmente conter o preço. As residências, sobretudo as de classe média, têm uma coleção de celulares ainda utilizáveis e que estão guardados, parados como relíquias de um museu de coisas nem tão velhas. Como deu para ver, essas são sinais que atentam que algo está errado e compõem uma pequena parcela dos fatos relacionados a essa prática.
Num passado distante, lá na Idade das trevas dos europeus, situações como essa seriam consideradas pecados. A produção era tão minúscula que era mais aconselhável armazenar e estocar do que simplesmente jogar fora os produtos essenciais à vida. Possuía-se, sim, mais tempo livre. Mesmo que os camponeses fossem explorados pelos seus Senhores, a acomodação e o ócio deviam ser imensos, já que a reação a esse regime só ocorreu séculos depois. Não se deve desprezar a influência cultural da Igreja Católica, mas a acomodação e o imobilismo social resultavam dessas duas causas. Os dominates eram exemplos para os seus dominados. Nobres, além de alguns poucos momentos de guerra faustosamente mencionados como impossíveis aventuras e épicos pífios, eram eternos indolentes, dando ordens a todos os servos, que os serviam com prestação, mas sempre com folgas.
Até que veio a Revolução Comercial. As atividades financeiras, bancárias e comerciais registraram um renascimento inesperado, como uma fênix que surgiu das cinzas. As causas dessa dura transformação ainda não parecem bem claras, havendo confrontos entre os registros históricos de diversas regiões do hemisfério Norte. Saindo da historiografia, passamos ao conceito de ócio, que por sua vez determina o grau de desperdício. O feudalismo anterior, começou a dar espaço, aos poucos, ao artesanato citadino. Nessa fase, os artesãos tinham total controle sobre seu próprio trabalho, controlando o seu horário e o quantitativo na produção, o qual era bem parco. Logo, utilizavam baixa quantidade de matérias-primas, o que, na grande escala, não representava um grande desperdício. Os navios da época, muito lentos, aproveitavam já a energia eólica, não resultando em grandes degradações.
Com um pouco mais de tempo, os artesãos começaram a ser explorados por um grupo seleto de novos ricos, que os apinhavam em galpões, usando máquinas pouco elaboradas, mas que já facilitavam o trabalho e aumentavam a produção e a quantidade de matérias-primas extraídas. O metalismo presente nessa época resultavam numa das primeiras apresentações do que se considera atualmente como desperdício, vindo como uma forma de avareza dos Estados modernos. A pilhagem do ouro na América causou enormes danos ao meio-ambiente do continente, acoplando em si outros prejuízos, como mudanças nos ecossistemas e genocídio e processo de aculturamento das populações locais.
O acúmulo de metais preciosos auxiliou no processo de industrialização de partes restritas da Europa. A riqueza e, consequentemente, o poder acabaram sofrendo uma centralização maior do que na época anterior, tão combatida pelos movimentos iluministas do século XVIII. Nessa nova fase, a produção sofreu um incremento tão grande que a partir de então, as crises eram geradas pelo excesso de produtos no mercado, e não mais pela sua falta, como acontecia anteriormente. Tornou-se possível produzir uma quantidade imensa de produtos em um tempo relativamente pequeno. A ciência pulou do fundo do quintal, naquela casinha dos fundos mal estruturada, para enormes laboratórios com a infra-estrutura necessária e financiados pelos industriais daquela época. Não existia, naqueles tempos, o empecilho de fundo moral e religioso.
Todo esse ambiente permitiu a extração vultuosa de matérias-primas, em diversas partes do mundo, que logo eram transformadas em produtos industrializados e, sem passar por qualquer análise, desprezando-se a "espionagem" da concorrência, eram postos em mercado, ao redor de todo o mundo, saturando-o com esses produtos. Por um lado, isso em muito facilitou a vida da população da época, diminuindo o esforço e ampliando o domínio do homem sobre a natureza. Por outro, a produção era excessiva, restando muitos exemplares nas prateleiras. Daí surgiu a primeira grande crise do capitalismo, crucial para a sobrevivência desse sistema, porém pouco mencionada.
Ocorrida no final do século XIX, a primeira grande crise do capitalismo atingiu principalmente a Europa, devido ao já mencionado fenômeno de superprodução. O excesso de oferta de produtos industrializados, comparado à baixa procura, garantiu a diminuição dos preços, que nem mesmo permitiu a compra do excedente da produção. Esse processo acabou por tornar o capitalismo como se o conhece atualmente.
A produção, a partir de então, ficou cada vez mais mecanizada. Taylorismo e Fordismo comprovaram isso, sendo predominantes até os dias atuais. A produção disparada, além das técnicas de publicidade, provocando uma ideologia consumista. Os custos, logicamente, diminuíram, o que acessibilizou a aquisição dos produtos industrializados com alto grau de tecnologia embutida. Ressalta-se que antes a indústria têxtil já possuía essa capacidade, mas tinha, na época, baixo grau de tecnologia. E assim vive-se até os dias atuais. O lançamento de novos produtos gera a aquisição desses, enquanto que os antigos, muitas das vezes, acabam parando no lixo por simplesmente serem anacrônicos.
O "neo-profetismo", centrado num provável e talvez distante desastre natural em escala global, acaba entrando nessa fome de consumismo, que saiu do plano das idéias para a realidade em alguns países e, em outros, já começa a mostrar suas facetas em certas classes sociais, como contrapartida de planos de distribuição de renda, com novos produtos que pretendem "revolucionar e acabar" com o risco da humanidade ser extinta por aquela que, ao longo de milhões de anos, gerou-a. São sacolas, papéis, folhas, utensílios domésticos e outros produtos feitos com base na reciclagem.
Esse método é uma boa forma de tentar minimizar o dano que é causado à Natureza, mas não deve ser a única medida, nem considerá-la como a solução para todos os problemas atuais. O que falta é uma mudança na ideologia individual, baseada no reaproveitamento, separação dos resíduos produzidos e educação no consumo, a fim de torná-lo mais consciente. Há que se destacar também a importância de investimentos do próprio Estado nos setores de coletas seletivas regulares, tratamento adequado do esgoto e resíduos industrais e monitoramento ambiental permanente. Enquanto isso não acontece, o jeito é esperar...sentado.

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